quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

¹/4 de Lata

Um pouquinho de reminiscências particulares...
com vcs ¹/4 de Lata.




Um garoto de carne, osso e sonhos. Um pai de carne, osso e desilusões.
Um dia real e palpável, quente como qualquer outro de verão.
A lata era companheira inseparável de seu pai, este que o garoto chamava para jogar futebol. Tinha o nome de Zacarias, não riam dele, é um bom nome segundo sua mãe. Nesta pequena história Zacarias não é um menino bobo e ingênuo, de 6 anos, nem pequeno e mirrado, não tem semblante de criança triste, nada disso, pelo contrario é bonito, cabelos bem cuidados de bom corte, forte, sadio, daqueles garotos sapecas que anseiam por saber o que se esconde abaixo do fino vestido das mulheres bonitas e de suas amigas de classe. Tudo o que todo garoto queria ser e ter, Zacarias tinha e era. Mas Zacarias tinha um desejo. Desejo este que ele jamais revelou a ninguém, era guardado abaixo da superfície de seus olhos arredondados e negros. Estava enterrado dentro dos seus olhos, junto com as imagens da realização de seus sonhos.
Todas as noites antes de dormir Zacarias rezava, com um fervor não pertencente a uma criança de sua idade.
- Nada mãe! - respondia ele a sua mãe sempre que ela perguntava por que ele rezava tanto.
Se deitava e dormia.
A mãe tentava conversar com o pai, pois já suspeitava sobre o que seriam os motivos das orações do filho, descontrolado e completamente bêbado gritava com sua mulher. Por varias vezes Zacarias acordava.

- Não!!! Maldita hora em que me casei com você! Mas de amanhã não passa eu vou dar parte de você na delegacia! Covarde!!!

- Saia da minha frente, sai do quarto, se quiser vai dormir lá em baixo na sala, mas hoje você não dorme na minha cama!!! - gritava o pai com uma voz balbuciada e a solavancos movidos a álcool.

No outro dia, sua mãe lhe levava a escola cedo, como sempre depois das brigas, ela o deixava um quarteirão antes do portão do colégio e ficava observando ele entrar na escola. Zacarias olhava para trás e via sua mãe acenando e sorrindo por entre olhos marcados por mãos pesadas e lagrimas. Zacarias tinha medo, muito medo que sua mãe não suportasse mais e fosse embora de casa deixando-o apenas com seu pai.
O garoto parecia se importar com o que havia acontecido durante alguns dias, mas logo se esquecia e encarava tudo como um incidente isolado, mas aquele era parte de uma linha enorme de produção aquecida e pronta para mais demanda, por isso todos se calaram sobre esses assuntos dentro de casa.
Zacarias como sempre via seu pai com a lata na mão, ele estava bêbado sempre, até que um dia ninguém mais se lembrou de como ele era antes de começar a beber e deram ele como sendo sempre assim, era sua personalidade, seu caráter, suas veias regadas de embreague continuo e interminável, proporcionado por latas e mais latas, que eram revendidas ao ferro velho e dado como mesada a Zacarias.

Zacarias tinha hora para falar com seu pai, assuntos de escola, viagens, amigos, tudo deveria ser falado a ele antes de começar a beber, caso Zacarias levantasse por descuido depois das nove da manhã, seu pai já estava na companhia da inseparável lata e já falando de um jeito diferente, um jeito que o deixava constrangido pelo próprio pai, não era vergonha dele, era vergonha que se sente pelo outro, vergonha alheia.

A noite chegava e de novo lá estava Zacarias ajoelhado ao lado da cama, sua mãe olhava-o sem que ele soubesse. Quando foi se deitar viu sua mãe, ele estendeu o braço sem dizer nada, ela se desencostou do batente da porta do quarto azul do filho e foi até ele, abraçou-o. Ele chegou com muito cuidado ao pé do ouvido da mãe, pregou seus olhos na porta, para avistar caso alguma sombra tomasse a luz do corredor e disse:

- Promete que não vai me abandonar nunca?

- Claro que não! Por que isso Zacarias?

- Shhhiiiiiii!!! - tentava calar sua boca para que seu pai não ouvisse o conteúdo da conversa.- Eu só queria saber isso. Boa noite. – virou-se e dormiu.

Sua mãe ficou meio abalada com a conversa e nem dormiu, passou a noite pensando por que seu filho dissera aquilo, pensou no futuro que estava construindo para seu filho, pensou em tudo e de cansaço pensou no divórcio, poderia ir para casa de sua mãe, onde o clima era mais ameno, mais saudável e mais propicio para criação de árvores como Zacarias, via seu filho como um grande eucalipto preso dentro de um vaso apertado posto em terra ruim e sem nutrientes para crescer o quanto deve. O relógio despertou, era manhã e mal sabia o que havia acontecido no quarto de Zacarias.

Na mesma noite, pouco depois que sua mãe abandonou o quarto meio desnorteada com a conversa do filho, o lençol de Zacarias caiu da cama, lançado ao chão por um vento forte que entrava pela janela branca de seu quarto azul. Ele tentou dormindo puxar o lençol mas sem sucesso acordou pois o vento lhe dava uma fria sensação em contato com seu suor, abriu os olhos, varreu o chão a procura de seu lençol, estava aos pés da cama, levantou. Se deparou com uma luz forte que não era a do corredor, tão maior em dimensão e força que seus olhos se apertaram, a luz diminuiu e sorrindo uma linda fada disse – desculpe-me, você estava dormindo, eu só estava a velar o seu sono!

O garoto em um rompante de alegria deu um pulo da cama fechou a porta e olhando para a fada perguntou:

- Veio para realizar o meu desejo?

A fada consentiu com a cabeça. Ele se ajoelhou aos pés da fada que ainda sorrindo lhe conferiu o que ele havia pedido.

Pela manhã sua mãe abriu a porta do quarto, foi até ele como de costume, sentou-se na beirada da cama, passou a mão em sua cabeça, estava gelada, como nunca, em pânico a mãe virou o corpo do garoto para que seus olhos pudessem ver, e tamanho foi seu desespero ao ver seu rosto refletido em seu filho, que estava diferente, o rosto de seu filho estava inteiramente metálico, puxou o lençol, e tudo era metálico, mas ainda sim era possível contemplar sua feição, a mesma. Ele abriu os olhos que piscavam em LED´s, disse “bom dia!” com uma grave voz também metálica.

Sua mãe chorou longe de sua face, para não enferrujar-la. Um choro triste de constatação.
Zacarias havia conseguido o que tanto queria, se tornar um garoto de lata.

Agora poderia desfrutar da companhia de seu pai como sempre sonhara.

Nenhum comentário:

Postar um comentário